Águas Insurgentes: Artivismo pós-capitalista, de Flavio Barollo
- Flavio Barollo
- 10 de out.
- 11 min de leitura
Atualizado: 16 de out.
Ensaio disponível na publicação Poéticas de las (T)tierras no site da Revista Climacom
Uma publicação bilíngue (português e espanhol) que nasce dos encontros e residências realizadas no Brasil e no México (2023–2025). A obra faz parte de uma trajetória de investigações sobre as relações entre arte e território, e as redes que delas emergem — simbólicas, afetivas e efetivas.
Organizada por Gabriela Leirias, reúne pesquisas e processos de artistas que experimentam modos de cultivar vínculos com a (T)terra, vista tanto como solo quanto como planeta.
Entre os temas que atravessam a publicação estão: arte situada e comunidades; plantas, cultivos e alimentação; águas e rios urbanos; resíduos, banheiros secos e fertilizantes humanos
Poéticas de las (T)tierras propõe uma escuta atenta aos territórios e às redes de cuidado, abrindo caminhos para imaginar futuros sustentados pela criação, pela colaboração e pelo respeito às forças vivas da Terra. ______ Águas Insurgentes: Artivismo pós-capitalista com (se)cura humana
Texto de Flavio Barollo
Rios invisíveis, futuros emergentes
Vivemos em uma era de transição e colapso simultâneo. No caso do (se)cura humana, entendemos que as cidades não são apenas espaços urbanos estáticos, mas territórios de disputa, onde narrativas sobre progresso, desenvolvimento e transição ecológica se desenrolam entre apagamentos e insurgências. Nossa prática artística e ativista surge a partir de uma constatação fundamental: os rios urbanos da cidade de São Paulo seguem vivos, mesmo que soterrados, poluídos e esquecidos. Eles fluem sob o asfalto, escapam por frestas, ressurgem em nascentes esquecidas e se fazem presentes nos corpos que os habitam. O início de nosso espanto foi em 2015, na época da chamada "crise hídrica" e com a performance “Mergulho no Rio Tietê”, da qual nadei no rio poluído dentro da metrópole.
O que significa criar arte a partir desses fluxos ocultos no nosso microcosmos? Como imaginar relações regenerativas em meio à devastação socioambiental do macrocosmos? Essa investigação se dá a partir de um método artístico desenvolvido organicamente ao longo das nossas ações que funde vivência em territórios urbanos, pesquisa aprofundada sobre temáticas, e materialização de ideias de esculturas urbanas, ações performativas e criações audiovisuais que atravessam nossos corpos para tensionar as estruturas do tempo presente. Nosso processo buscou nesta trajetória uma crítica às políticas de destruição ecológica e a tentativa de materializar alternativas, ainda que dentro da distopia vigente.
É nesse contexto que se inseriu a participação do (se)cura humana [Flavio Barollo e Wellington Tibério] no Poéticas de las (T)tierras - Rede Sur Brasil-México, coordenado por Gabriela Leirias. Nossa contribuição se deu como um registro do que já fizemos, como foi o caso de nosso primeiro trabalho em parceria e curadoria de Gabriela, no projeto Jardinalidades no Sesc Parque Dom Pedro. Naquela oportunidade em 2019, construímos a obra "Rio Paralelo Tamanduateí", que se tratava de uma performance-coleta de água do rio-esgoto de mesmo nome, e condução desta água para um protótipo de estação de tratamento, com soluções baseadas na natureza, da qual originou um lago límpido com peixes e plantas. Um dos exercícios de projeção de possibilidades futuras que realizamos na nossa prática.
Como artistas e pesquisadores, buscamos provocar o presente para abrir frestas para um outro mundo possível, trabalhando com ações concretas que desafiam a concepção de tempo linear e progresso infinito, para que se possa negar a frase (não) atribuída a Mark Fisher: “É mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”
Arte como exercício de imaginação pós-capitalista
A transição energética, frequentemente promovida como solução para a crise climática, ainda opera dentro da lógica capitalista, perpetuando desigualdades e novas formas de extrativismo. A demanda por lítio, cobre e outros minerais, fundamentais para a chamada economia 'verde', não rompe com a exploração da terra e dos corpos, mas apenas desloca suas frentes de devastação. No Sul Global, povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais sentem os impactos dessa corrida por recursos. E no âmbito urbano, populações sofrem com a gentrificação de territórios, pressão da especulação imobiliária, enchentes, atingidos e atingidas pela força do capital.
Em vez de aceitar essa narrativa como inevitável, diante de tamanha indignação e consciência dos mecanismos, vislumbramos a construção de outras possibilidades: tecnologias apropriadas às realidades locais, economias baseadas no Bem Viver e práticas de regeneração que rompam com a ideia de progresso linear. Não basta substituir um sistema extrativista por outro de fachada ecológica; é preciso imaginar um mundo em que a terra, a água e a energia sejam comuns e não mercadoria.
Inspirados por pensadores como Aílton Krenak, Alberto Acosta, Silvia Federici, Joanna Zylinska, Kohei Saito, Malcom Ferdinand, Mark Fisher e muitos outros e outras, propomos que mesmo o pós-capitalismo sendo um horizonte utópico distante, há algo no tempo presente que já se manifesta em práticas concretas de resistência e criação por vários projetos coletivos. Ações pós-capitalistas já existem, algumas delas que podemos citar são:
Hortas urbanas, cultivos e cozinhas comunitárias como reapropriação do espaço público e forma de insurgência alimentar;
Reflorestamento em praças e territórios urbanos como resistência ao urbanismo hegemônico e regeneração de mata nativa;
Águas insurgentes, como aquelas que emergem na Ocupação Travessa, tais como nossas obras “Lago da Travessa” e a torneira com água de nascente, neste território que adotamos e recriamos temporalidades não lineares dentro da distopia urbana, na Zona Oeste de São Paulo.
Método artístico: da inquietação à materialização
Nosso processo de criação nasce da inquietação diante das contradições do mundo que habitamos. Partimos de urgências socioambientais e humanitárias, investigamos seus desdobramentos e materializamos tensionamentos por meio da arte. Cada obra do (se)cura humana é resultado de um percurso que combina pesquisa teórica, vivências territoriais e experimentação poética, criando espaços onde a experiência sensível e a crítica política se entrelaçam. O impacto de nossas intervenções não se limita ao campo simbólico, mas se reflete na forma como ativam e transformam a relação do público com os territórios. Entrar em um rio poluído, construir lagos sobre o concreto, instalar uma torneira de água livre em uma cidade onde a água é mercadoria – todas essas ações geram deslocamentos, questionam a normalidade da escassez e fazem do corpo um território de disputa.
Mas sobretudo, o que nos move é expor as contradições do sistema capitalista, criando situações artísticas possivelmente tão ou mais absurdas que as já pré-estabelecidas. O flerte com o surrealismo está presente em nossas criações, extrapolando e desafiando percepções, de modo a instigar o público a enxergar outras perspectivas. Em geral, essas perspectivas, situadas no campo do “absurdo” aos olhos contemporâneos, podem ser aquelas que desejamos em um futuro regenerativo, pós-catástrofe.
Em nossa performance-instalação “Corpo-Árvore”, por exemplo, que possui uma ativação performática e depois permanece como instalação visual, representamos uma árvore fragmentada de galhos mortos e reconectada a um tronco ligado a máquinas, tensionando as contradições da sustentabilidade capitalista e seu discurso tecnocrático de regeneração ambiental enquanto a obra evapotranspira com o auxílio de aparelhos. Uma névoa de nebulização “lúdica” contrasta com um desfecho radical, percorrendo várias fases da experiência que o Antropoceno nos traz.
Já na performance “Piscina do Fim do Mundo”, utilizamos a simbologia das piscinas infláveis de plástico como epicentro do deleite e do consumo de seres futuristas retrógrados – representantes de uma casta burguesa –, desencadeando um transbordamento de lama durante a ação cênica predatória praticada por aquelas figuras, em alusão aos crimes de mineração como os de Mariana e Brumadinho, aproximando a experiência da catástrofe ao contato do público.
Da mesma forma, as performances “Mergulhos” e “Banhista de rios urbanos” são ações simbólicas, tentativas de reposicionar o corpo humano em um ecossistema negado, quando ele se imerge em rios poluídos e, depois, circula em galerias de arte. Isso revela tanto a brutalidade do abandono ambiental e indignação com a situação dada e determinada, quanto o anseio de reencantamento com os ciclos naturais, reforçando a vontade de nadar novamente em rios limpos em São Paulo, ainda durante nossa geração de seres viventes.
Criar entre as utopias e distopias
Na busca pela superação do capitalismo – o pós-capitalismo –, proponho aqui, já que este texto tem caráter mais informal e não acadêmico, um neologismo possivelmente petulante: “pós-topia”. Esse termo não existe no âmbito acadêmico, mas sinto que ele cabe neste contexto de escrita performática como uma imagem que brota do radical grego topos (lugar), porém distinta de utopia (não-lugar idealizado e inalcançável), de distopia (lugar de colapso e desastre) e também de “pós-utopia”, expressões já muito desgastadas.
Essa tal de “pós-topia” se alinha, em termos semióticos, à noção de “pós” do pós-capitalismo, buscando transcender as perspectivas atuais. Em vez de um futuro distante ou de um caos inevitável, essa ideia estabelece um espaço de atrito e experimentação no aqui e agora, dentro das brechas que persistem mesmo em meio ao colapso contemporâneo.
Esse conceito tem conexão íntima com a “Heterotopia” de Foucault, que, em linhas gerais, designa espaços de exceção onde múltiplas temporalidades, realidades e dinâmicas sociais coexistem de forma paradoxal, abrindo fissuras no tecido normativo. Ao incorporar o prefixo “pós”, talvez se crie um deslocamento, conversando com as ideias do pós-capitalismo e se materializando em obras que não projetam um futuro longínquo, mas instauram espaços temporários de resistência e imaginação dentro de um colapso já em curso, conferindo potência à vida no tempo presente.
Surgem daí práticas concretas que rompem a lógica binária entre utopia e distopia, propondo uma experimentação ativa de novos modos de existência. Como pensar e agir em meio ao colapso? Como criar realidades paralelas sem cair na paralisia diante da catástrofe iminente ou na ilusão de uma solução absoluta? É precisamente nesse território de invenção que, mesmo diante das ruínas do capitalismo, tentamos fazer o impossível se tornar executável agora.
Buscamos reconfigurar as expectativas do presente, vislumbrando um “Futuro Ancestral” (iluminado por Krenak) vivido desde já. Nossos projetos, como o “Parque Aquático Móvel” e o “Lago da Travessa”, exprimem essa lógica: além de projeções futuras, são atuações insurgentes que questionam a normalidade urbana estabelecida. Tentamos criar narrativas a fim de reconfigurar as expectativas do presente, de buscar uma materialização de um “Futuro Ancestral”, proposto por Krenak, no agora. Nossos projetos, como “Parque Aquático Móvel” e “Lago da Travessa”, são expressões dessa lógica.
No “Parque Aquático Móvel” levamos uma caixa d'água no meio do asfalto da urbe, inflamos piscinas e convidamos as pessoas a virem com trajes de banho tomar banho de rio, com águas límpidas coletadas de nascentes próximas com bombas. Essa ação de se banhar em água de rio, numa cidade de rios-esgoto, causa uma catarse coletiva e um estranhamento provocador para quem passa, descolando a todos nós de um tempo-espaço pré-estabelecido pela manifestação brutal da cidade.
Já o “Lago da Travessa”, diferente da transitoriedade e mobilidade do Parque, surge como uma obra permanente em vielas e passeios públicos, geralmente leitos de rios canalizados, onde conduzimos água de nascente ou lençol freático para criação de um lago sobre o concreto, trazendo vida aquática com peixes e plantas, e umidificando um local abandonado para quem passa por ele.
É justamente nesse espaço entre ruína e reinvenção que buscamos atuar, gerando provocações e experiências que subvertem a linearidade do tempo e do progresso. O movimento também orienta a forma como reocupamos os espaços urbanos. Cada “escultura urbana” que criamos é um ato de intervenção que subverte a previsibilidade da cidade capitalista e propõe uma nova relação entre corpo, território e natureza, convidando outras pessoas a se somarem a uma experimentação viva que não espera até que o sistema político se reforme. As brechas do presente são o lugar onde o movimento ganha corpo, onde imaginamos, mesmo que provisoriamente, futuros mais livres e pulsantes.
Contra-uso da inteligência artificial
A Inteligência Artificial (IA) surge como uma ferramenta para esse propósito de sonho e imaginação. Um dos símbolos máximos do progresso tecnológico, da continuidade do extrativismo, aprofundando nosso colapso, a inteligência artificial é mais uma das tecnologias criadas pela humanidade que devasta o planeta em prol de nosso bem-estar e conforto. Condenar seu uso nas artes é como condenar a tudo que nos cerca, inclusive nossos computadores, celulares e tudo mais. Topamos desafiar nossos padrões de consumo? Enquanto isso, conscientes da nossa contribuição para esta rede de exploração da Terra, lutando contra ela em favor do decrescimento e de uma sociedade do Bem-Viver, refletimos: “e se usarmos essa dicotomia para imaginar realidades alternativas? E se como artistas, buscarmos subverter o uso predatório da tecnologia da IA, transformando-as em ferramentas de fabulação insurgente?”
Assim criou-se o projeto “Cidades Utópicas”, nosso experimento audiovisual que nos conduziu a um mergulho numa residência artística e que voltou a gerar um novo projeto audiovisual, o longa-metragem “Cidades Utópicas em um Futuro Ancestral”. Nesta saga, utilizamos a IA para projetar futuros especulativos onde os rios ressurgem diante de transeuntes da cidade, a paisagem urbana se reconcilia com a água e a vida pulsa fora dos limites do concreto. O que acontece quando utilizamos uma ferramenta concebida dentro do capitalismo para criar cenários que o transcendem? Como desprogramar a IA para que ela não reproduza os padrões extrativistas e coloniais com os quais foi treinada?
A experimentação tecnológica faz parte de nosso processo como um campo de disputa. Para nós, a IA não é um instrumento neutro, mas um território de apropriação. Nosso interesse não está na tecnologia pela tecnologia, mas na possibilidade de subvertê-la. Assim como transformamos espaços urbanos em experimentos de futuro (como no Lago da Travessa e sua torneira na Ocupação Travessa), transformamos a IA em um dispositivo de fabulação radical.
Corpo e engajamento coletivo
Cada intervenção artística do (se)cura humana busca uma energia intensa e mobilizadora. Acreditamos que é através do corpo em ação, muitas vezes levado ao seu limite físico ou catártico, que conseguimos provocar reflexões profundas sobre as questões abordadas. O corpo tanto na ação performática quanto na ação de construção civil das obras é um agente vivo e potencializador, que se coloca em risco e expõe suas vulnerabilidades para gerar diálogos autênticos com o público e com a cidade.
As intervenções são frequentemente realizadas em espaços públicos, as performances em espaço aberto, exatamente para potencializar essa comunicação e fruição, envolver diretamente as pessoas durante a existência das obras na cidade. Nossa abordagem evita o hermetismo conceitual. Buscamos constantemente uma comunicação direta e compreensível, permitindo que nosso trabalho seja acessível a diferentes públicos.
Consciência social: da teoria à prática
O impacto real das nossas ações são ponderados junto à sua dimensão artística. Ações que reverberem, ampliem debates e gerem novas possibilidades coletivas. Mas alguns desdobramentos são imprevisíveis e nos surpreendem. Como foi o caso da instalação de uma torneira na “Ocupação Travessa”: uma ação concreta que extrapola o campo simbólico e performativo, alcançando diretamente a dimensão da sobrevivência e dignidade.
Para a população em situação de rua, o acesso à água potável é uma necessidade básica, uma condição de existência negada cotidianamente pelo projeto urbano excludente. A torneira, que foi desencadeada a partir do “Lago da Travessa”, se tornou um ponto de encontro, um respiro dentro da lógica opressiva da cidade, um espaço onde a água rompe sua função privatizada e passa a circular como um direito comum, um bem compartilhado e livre.
Essa ação evidencia uma das faces mais brutais do racismo ambiental: a desigualdade no acesso à água, que não é apenas uma consequência da precariedade urbana, mas um mecanismo estrutural de exclusão. Ao criar essa possibilidade concreta de acesso à água, o (se)cura humana denuncia essa lógica excludente e a reverte, ainda que prototipal e temporariamente. A torneira transforma um território marcado pelo abandono em um local de cuidado e resistência, numa época em que a água é privatizada e mediada pelo lucro, a ação artística se une com a solidariedade e pela prática do comum.
Essa obra se inscreve dentro da metodologia do coletivo, onde cada intervenção nasce de uma escuta sensível do território e das suas urgências. Denuncia uma desigualdade e cria espaços onde ela seja ativamente ressignificada. O impacto da torneira se torna um gesto radical contra a política de escassez imposta às populações marginalizadas.
Para onde vamos? Um convite à insurgência artivista
Nos posicionamos junto a todas as pessoas e coletivos interessados na interseção entre arte, política e resistência, especialmente no contexto latino-americano e do Sul Global, no caso em questão os participantes do Poéticas de las (T)tierras - Rede Sur Brasil-México. Reconhecemos que as questões enfrentadas são desafiadoras, não são isoladas, mas conectadas por sistemas de exploração global. Nosso trabalho corrobora para criarmos juntos uma rede insurgente, em busca de articular alternativas reais ao capitalismo vigente. E a água pode ser símbolo deste caminho para uma sociedade de abundância.
Este texto tenta expor um pouco do nosso trabalho, no sentido de ser um convite constante à rebeldia poética, um apelo para que, coletivamente, possamos imaginar futuros possíveis e transformadores.
A cidade insiste em soterrar seus rios. Nós insistimos em fazê-los emergir.
O mundo insiste no extrativismo. Nós insistimos em imaginar futuros que o ultrapassem e superem a lógica miserável do lucro.
Flavio Barollo
Artivista, performer e videoartista, membro do coletivo (se)cura humana
@securahumana


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